sábado, 9 de janeiro de 2016

Processo Criativo do Ator, segundo Lúcio Leonn

(Capítulo 1 - Ensina-se Teatro? Onde mora tal Aprendizagem? Subtópico Processo Criativo do Ator, (p.18-23).).
                                                                                                      Por Lúcio José de Azevêdo Lucena               (Lúcio Leonn)

“Lúcio Leonn; resolva teus papéis com a mesma razão e sensibilidade com que encarastes os ‘Os Iks’ e tua carreira vão longe... Um abraço.” Celso Nunes (diretor e professorde teatro) Curso Colégio de Direção Teatral,  (1998).
O diretor Celso Nunes e Lúcio Leonn em processo de criação / diálogo com o diretor para usar tal peruca no espetácuo "Os Iks” (1998). Theatro José de Alencar (TJA). Acervo pessoal\imagem
             É no jogo cênico dos ensaios, nas  repetições, nas  apresentações diante da plateia, nas ações orgânicas  pelo uso da  criatividade (testes) em situação dramática advindo do texto, nos estudos de criação de personagem e na peça que se deseja encenar, que se desenvolve o processo criativo do ator. Este processo de criação e representação nunca será o mesmo. Ele é contínuo. Assim, somente ele, o ator, tem o privilégio de resguardar-se num tempo de criação e suspender o plano racional/real para imbuir-se de emoção, utilizando-se da imaginação e da criatividade.  E, logo depois, fará uso de uma técnica, materializando ações que podem resultar em processo orgânico e, mais adiante, um encontro cênico com a plateia que, contando com a personagem já criada, se estabelece sempre  possibilidades  para uma nova  relação:  público/ator.
       Antes o intérprete experiência, por meio de jogos de improvisação, o universo mágico na situação dramática do personagem, com intuito de deixar fluir, consciente ou inconscientemente, em seu corpo de ator o que está sendo pesquisado ou  maturado. Quando encontrado até então se tem o momento oportuno de tomar posse do personagem, ou vice-versa. Assim, está selada a união do criador versus a criatura, ou seja, a interpretação.    Portanto, vai depender do tempo de formação e do contexto de vida do ator para entender o processo criativo da atuação. Logo ele é infinito, em constante e permanente aprendizado.  Pois, como atores, “não sabemos de quase nada”.
          Nesta lacuna, indico mais uma vez  Kusnet:  (l987: o Ator e Método), quando revela  um de seus momentos experimentais:

“No tempo em que comecei a trabalhar em teatro profissional, isto é, em 1920 não existia o Método por escrito. Nós conhecíamos as tendências do Mestre [Stanislavski] através de alguns artigos escritos por ele, e principalmente, através de suas realizações no ‘Teatro de Arte de Moscou’, que sempre foram muito comentadas tantos pelos críticos, como pelos pesquisadores de teatro (...). Só muito mais tarde aqui no Brasil, quando pela primeira vez tive a oportunidade de ler suas obras, cheguei a reconhecer  nos  elementos  de seu  Método alguns detalhes do meu trabalho, quase instintivo daquele tempo".  (grifo meu)
Kusnet: (l987: o Ator e Método)
No entanto, mais uma vez analisando o processo de criação do ator, quando ele está diante da personagem, enfatizo que ele é um aprendiz e como tal precisa enveredar-se pelo caminho do processo criativo para reaprender o significado do andar de seu personagem, sua correta respiração, a modulação vocal no espaço cênico, a marcação orgânica/direcionada, as ações, os gestos,...
O ator necessita de técnicas, de adquirir ferramentas, habilidades e a tão perseguida competência que deve estar em toda e qualquer profissão. Sobre o adestramento do ator, a atriz Fernanda Montenegro (Viagem ao Outro: sobre a arte do ator), atesta o seguinte:
“(...) é necessário como instrumento de mobilização. Mas isso não é tudo. Um ator pode cumprir todo esse ritual (conjunto de exercícios, boa voz, articulação, métodos de sensibilização, etc.), esse adestramento, e não ser um bom ator. Pode cumprir toda a pesquisa formal, a procura do conteúdo, e ainda assim não ser um bom ator (...). No Brasil todos nós já passamos por muitos métodos mal absorvidos, superficialmente ensinados. Vamos acrescentando a nossa prática e a nossa vivência ao que conseguimos captar. E cada um de nós, no fundo, cria sua própria técnica. E sobrevive.”  (O ofício de Intérprete, p.29;1988); (o grifo é meu)
Fernanda Montenegro 
(Viagem ao Outro: sobre a arte do ator)
          Como ator, percebo que tem fundamental importância à preparação corporal e vocal, da mente em absorção, e acima de tudo espírito aventureiro para o jogo cênico, principalmente da vida em teatro. Conheço atores sem nenhuma preparação corporal (disponibilidade pré-cênica) muito antes, ou depois do espetáculo em seu cotidiano de ator, pois se pode perceber em cena o resultado: desqualificador. É preciso estar-se à frente, em função de sua arte, bem como dispor-se de instrumentos indispensáveis na mobilização da criação. Ou seja, é preciso fazer algo cenicamente corporal, criativo e necessário para o encenador e demais atores do grupo, principalmente para o espectador. Não falo de eloquência, mas de simplicidade quanto à encenação, nos movimentos de cenas, ou nos gestos conduzidos por um ator/personagem.
          Há casos de encenações onde se evidencia a interpretação de alguns atores, ou da direção numa determinada linha de montagem, nesse caso divergindo completamente de outros elementos cênicos. Isso ocorre talvez quando não se busca uma harmonia ou convergência na concepção cênica através da pesquisa. Pesquisa esta que vai desde a criação do personagem, responsabilidade dos intérpretes, permeada pelas unidades de cenas, e levantamentos de situações dramáticas seguindo indicações do diretor e do encenador.
Lúcio Leonn, em Cena de: "Os Iks', de Peter Brook e Colin Turnburn (tradução Lúcio de Cirene Navarro et al), encenação Celso Nunes - Espetáculo final Curso Colégio de Direção Teatral (1ª turma -1996-1999 / Realização Instituto Dragão do Mar}: movimento iks-caçadores; (Curso Colégio de Direção Teatral/Instituto Dragão do Mar) Imagem(1999)\ acervo pessoal
Observa-se que, no âmbito da encenação do processo de construção, numa  manutenção e  desconstrução, durante os ensaios ou em (re)apresentações cênicas, confirma-se a essência de um método adquirido pelo intérprete em determinado curso/oficina/escola de teatro, e que pode permanecer com ele para o resto da  vida. Mas se realmente não houve uma consciência adquirida antes, isso ocorrerá por pura intuição, embora esta intuição seja válida, fazendo parte também do processo criativo do ator.
Desta forma, quando o ator assimila uma técnica e a põe em prática através de ações reflexivas, neste caso pode ocorrer nele uma mudança de comportamento em busca de criação teatral e/ou pessoal. O mesmo acontece para quem repassa esta técnica. Este é o processo metodológico e consequentemente de assimilação e de resultados reveladores.
Às vezes, assiste-se a um espetáculo e fica-se a comentar: “como a interpretação daquele ator estava muito convincente no papel, que presença cênica!?”. Quando não, ao contrário: “meu Deus, que terror!”.
Leonardo Martins(E)-Thales Valério-Lúcio Leonn(C) e Oscar Roney em: "O Caso dessa tal de Mafalda, que deu muito o que falar e que acabou como acabou num dia de Carnaval", de Carlos Alberto Sofreddini. Direção: Luis Eduardo Vendramini, Curso Colégio de Direção Teatral (1997) Acervo pessoal\imagem
Não avalio na condição de um ator de teatro, mas também como público. Em se tratando do ator de Fortaleza-Ce, a partir da década de 1990, percebo que alguns fazem teatro para agradar o outro (ator), principalmente, quando aquele ator apreciador vem assistir a ele. Onde fica o público diante de uma representação teatral? O que os atores aqui apontados têm a oferecer de mudança de polaridades em relação à melhoria em  todo o conjunto cênico?
Outro aspecto relacionado à plateia, no que se refere também à interpretação de ator, é quando ela questiona simplesmente: “não gostei daquele ator, pois não soube se expressar como os demais. Ele é tão apagado”. Claro, o público tem toda razão, pois será que tal ator encontra-se em processo de formação profissional?
Sobre esta discussão, TOUCHARD: (1978: 90) emprega o seguinte enfoque na relação de responsabilidade do encenador perante os atores:
     
“Não somente lhe cabe fazer respeitar a unidade pela harmonização do desempenho dos diversos intérpretes, mas deve ser, para cada ator, o guia, aquele que torna compreensível o sentido profundo e as matizes do texto. Hoje, não existe suficiente interesse por essa missão essencial do encenador. Vê-se nele, sobretudo o ‘animador’, o que faz reviver a obra em seu conjunto, sem se preocupar muito com o papel de pedagogo. Muitos encenadores contentam-se apenas em utilizar os atores postos a sua disposição, sem procurar formá-los.” (grifo nosso)

Não quero dispor de todo o ponto de vista acima e colocá-lo sob o diretor/encenador, mas sim, tanto o diretor quanto o ator têm algo a contribuir em todo segmento sociocultural.  É como disse Procópio Ferreira (1898-1979): “ao contrário de outrora, só é ator hoje quem pode ser: – Quem possua educação social e ilustração além do instinto imitativo. O ator vem, pois, da sociedade para o teatro”. PRADO apud FERREIRA, (1984: 87).
 Livro Procópio Ferreira - a Graça do Velho Teatro por Décio de Almeida Prado.Editora Brasiliense
Ainda sob este aspecto, TOUCHARD continua e vai mais além, acerca do processo criativo do ator mediado à luz do encenador:   
    
“Ora, se desejam que o artista tome gosto por seu ofício, se desejam que os ensaios sejam uma atividade criativa para cada um dos atores, importa que todo papel novo seja para ele a oportunidade de um enriquecimento, de uma conquista nova, numa arte nunca possuída. É preciso que cada  novo personagem  encarnado lhe traga uma experiência de si mesmo, essa experiência que obscuramente ele pede que a arte dramática sempre lhe dê. Se não experimenta a vertigem dessa dupla posse (da personagem por ele próprio , dele próprio pela  personagem) como o espectador, por sua vez, entraria no jogo misterioso? O que chamamos de presença de ator nada mais é do que sua  presença  na personagem.  Poucos  atores dispõem  espontaneamente desse dom necessário...” (o grifo é meu/nosso), ( ibidem; p.91).

          Percebo, procurando outra resposta às diversas argumentações que norteiam a aprendizagem do ator, pois não há um padrão cênico preestabelecido para ocupar uma vaga de ator. Daí as indagações: Será que só nos tornamos atores quando frequentamos uma escola e adquirimos uma técnica? Pode qualquer um ser ator? Pois, fala-se: Fulano tem talento, Beltrano dom e vocação, Sicrano sorte. Além de talento inato, herança genética, ofício, ambição televisiva, modismo e etc.
Sobre o assunto Fernanda Montenegro afirma que:

“O intérprete pode se expressar por este ou aquele método, ou pela soma de todos os métodos, em algumas peças, pode-se usar mais um método do que outro. Mas no fundo, a experiência interligou de tal forma os diferentes métodos que não é mais possível ser puramente isto ou puramente aquilo.” (ibidem, p. 29 e 30).

          É nesse momento que o intérprete pode encontrar sua linha de trabalho, aquela com que ele mais se identifica, seja estilo ou fé, embasamento ou senso teórico, comunhão de grupo, mas de alguma técnica, ele torna-se competente e expressivo na sua própria Arte de acreditar.
Voltando às indagações apresentadas no inicial deste capítulo, nos remetemos a NUNES (1982: 09-10), quando exemplifica algumas definições para o ensino do teatro:

“No ensino de teatro, deve-se levar em conta a personalidade do aluno. O educador deve ter um conhecimento aprofundado de cada aluno, uma vez que o ensino varia de um aluno para outro. No teatro, cada um possui alguma coisa que o outro não tem, que vem  do fundo do ser e que não pode ser ensinado. O teatro é uma arte que engaja todo o ser humano, toda sua vida. O ensino de teatro deve tocar tanto o espírito quanto a sensibilidade do aluno. Ele deve ser vivido pelo indivíduo em todo o seu ser e em todas as suas ações. Teatro não se ensina; aprende-se praticando-o. Não se trata de ‘transmissão  teórica’, mas de ‘transmissão de experiências’, de transmissão de práticas. O ensino do teatro está fundamentada na experiência pessoal (...) o mérito da Escola, consiste em permitir a possibilidade de confrontar experiências diversas.”
   
Este autor nos mostra “dificuldades” quanto à resolução nas definições de ensino e aprendizagem. É porque nelas há algo de indefinível. Tanto que o que procuro aqui é levantar discussões entre um ensino sistematizado, formação continuada em grupos, o processo criativo do ator, a busca de uma técnica, os depoimentos de ontem e hoje acerca da formação teatral.
1997 "Dois Perdidos numa Noite Suja" Texto de Plínio Marcos\ Exercício do Curso Colégio de Direção Teatral Supervisão de Clovis Levi . Direção de Graca Freitas TJA \ com: Ronaldo Agostinho(D) e Lúcio Leonn(E) Acervo pessoal\imagem dos atores
Pode-se dizer que, entre as dez definições acima, as que mais se aproximam desta análise temática, porque são pontos de vista que aqui mais circundam, compreendem os conhecimentos prévios, informações que a pessoa já traz consigo mesmo e que podem revelar um fator importante na carreira teatral.  A outra se refere por meio da prática do fazer teatral, e não de um conhecimento formal sobre este ensino e, finalmente, é que teatro não deve ser ensinado cientificamente, cabe à escola de teatro dispor de elementos de ressignificação, em paralelo a uma gama de experimentos já encontrados pelo aluno-ator, tanto no seu percurso teatral como no de sua vida.
Portanto, fica também aberta a possibilidade do(a) leitor(a) apontar sua própria definição ou conclusão sobre ensino/aprendizagem em teatro, após tais assuntos aqui já explorados.
Ainda em fundamentação teórica de NUNES, ele menciona uma parte referente ao professor de teatro bastante relevante ao dizer que “o professor não transmite apenas conhecimentos aos alunos, ele tenta, sobretudo fazer com que este tome consciência de suas possibilidades escondidas.”
E ainda acrescenta: “há mais do que a transmissão de um saber, pois o trabalho do professor consiste em levar o aluno à liberação de alguma coisa escondida e fonte que ele possui. Ele deve também ajudar o aluno a desenvolver sua imaginação e a ser claro e mais preciso.”, (ibidem, p.11).
Entendo que o professor media tais conhecimentos procurando conduzir o aluno de forma verdadeira a encontrar e explorar aquilo que nele está adormecido, algo que o educando já  traz na bagagem mas ainda não é patente,  conciso e urgente de ação reflexiva. Digo que é preciso fazê-lo perceber suas próprias potencialidades diante do meio e saber guiar-se sozinho, pois, ao usar sua imaginação, conseguirá “voar”.
Espetáculo de conclusão "Yerma" de Garcia Lorca/ Curso de Arte Dramática da UFC (1992-1994)-Teatro Universitário da UFC. Direção Ivonilson Borges. Acervo Pessoal fotorreprodução jornal O Povo 1994 — com Lúcio Leonn (E)-chão) Luciano Jr (as cunhadas),  Joana Angélica,,Antonio Carlos Vilar, Hilda Brasil(D-chão).Vanessia Gomes e  Helena Vilar (desdobrando-se no papel  titulo de  Yerma) em  Fortaleza(CE).
No entanto, isso quer dizer que o aluno-ator precisa conhecer sua própria ferramenta de trabalho: o corpo. Nele encontram-se os limites ou (des)bloqueios para uma expressividade ou falta de teatralidade no palco de maneira consciente e eficaz.
Então, é através do aquecimento corporal e vocal, de exercícios de jogos dramático-teatrais, de sensibilização, de leituras, da análise ativa de textos e estudos de personagens, ou pela vivência teatral que fluirá nas possibilidades artísticas de um ator-pesquisador, algo novo sob a condução limiar de um tutor, o professor-orientador.
Tanto que NUNES afirma que “o ensino de teatro é uma pesquisa que deve conduzir o aluno a expressão e à sua própria evolução.” E mais adiante, o autor considera que “o teatro não é nem uma ciência nem uma técnica, e sim: o teatro é vida; por conseguinte seu ensino não pode reduzir a comunicar um saber”. Logo depois, ele conclui: “todo artista é partidário da ideia de que a prática do teatro depende sim de uma técnica”, (p.11).
Mas também eles, (NUNES e GOURDAN) concordam com o ponto de vista de que  “nem o teatro nem a arte do ator são disciplinas cientificas...”.
É por isso que para o diretor e autor Celso Nunes, o trabalho criativo do ator é aquele que

“por se situar sua atividade num período de tempo e um espaço bem determinados, é um fator imperativo. Logo o ator deve recorrer aos seus potenciais, sempre que isto se fizer  necessário. E esse recurso à sua criatividade só se tornará possível se esse ator dominar um método.” (grifo meu); ibidem.

Logo, tais assuntos abordados aqui não se esgotam e sempre que se pesquisa nesse universo, encontraremos sempre aquele ator ou encenador que tem sempre algo a dizer - seja através de espetáculo, de técnica ou de uma nova linguagem - alimentando assim o homem pela  chama viva ou pelo deslumbramento da arte teatral.
“O Manifesto Antropofágico" de Oswald de Andrade.Direção: Ivonilson Borges, Salão Nobre da Reitoria da UFC. CURSO DE ARTE-DRAMÁTICADA UFC-1992. Acervo pessoal  Lúcio Leonn (E) em  Fortaleza(CE).

No entanto, é talvez esta chama viva que ao longo da história das artes cênicas nos une, pois não somos máquinas, e o alimento da alma é quase sempre a emoção guiada por um rosto ou pelo gesto de um ator.

(Fonte: Capítulo 1 - Ensina-se Teatro? Onde mora tal Aprendizagem? Subtópico Processo Criativo do Ator, (p.18-23).). 

Fragmento da pesquisa de pós-graduação intitulada: Os Processos de Formação Teatral em Fortaleza na década de 1990 – Memórias de um Ator (LUCENA (CEFET-CE | UECE, 2002).